sábado, 20 de março de 2010

INFORMES


  • MONITORAS DO NEPEFIL
Esquecemos de apresentar a Luciana, que também, junto com Tamiris, é monitora do NEPEFIL.

  • BLOG DO CURSO: Para quem desejar refrescar a memória, pode conferir http://classicosdateoriacritica.blogspot.com/ - em particular:
• PROJETO DE CURSO QUINTAS FILOSÓFICAS - Os clássico...

• SÉCULO XIX - ASPECTOS HISTÓRICOS

• Karl Marx - Apontamentos Biográficos

• CARTA DE KARL MARX AO PAI EM TRIER - 1837

  • PRÓXIMO ENCONTRO: 25.03.2010 - Teremos a participação de mais um colega/Professor, fundador do NEPEFIL. Ele vai tecer considerações sobre a Filosofia de F. Hegel;

  • ATENÇÃO: Nosso próximo encontro será na sala 25, 2° piso do prédio do IC-IV, Centro de Educação. A sala 25 é a última do corredor, no 2° piso próxima ao toilet masculino. Solicitamos chegar no horário, 14h.

Boaventura de Souza Santos - Guinada à esquerda?

Carta Maior
Quarta-feira, 24 de setembro de 2008
DEBATE ABERTO

Boaventura de Sousa Santos

  • O impensável aconteceu
O Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização; o mercado não é, por si, racional e eficiente, apenas sabe racionalizar a sua irracionalidade e ineficiência enquanto estas não atingirem o nível de auto-destruição.

A palavra não aparece na mídia norte-americana, mas é disso que se trata: nacionalização. Perante as falências ocorridas, anunciadas ou iminentes de importantes bancos de investimento, das duas maiores sociedades hipotecárias do país e da maior seguradora do mundo, o governo dos EUA decidiu assumir o controle direto de uma parte importante do sistema financeiro.
A medida não é inédita, pois o Governo interveio em outros momentos de crise profunda: em 1792 (no mandato do primeiro presidente do país), em 1907 (neste caso, o papel central na resolução da crise coube ao grande banco de então, J.P. Morgan, hoje, Morgan Stanley, também em risco), em 1929 (a grande depressão que durou até à Segunda Guerra Mundial: em 1933, 1000 norte americanos por dia perdiam as suas casas a favor dos bancos) e 1985 (a crise das sociedades de poupança).
O que é novo na intervenção em curso é a sua magnitude e o fato de ela ocorrer ao fim de trinta anos de evangelização neoliberal conduzida com mão de ferro a nível global pelos EUA e pelas instituições financeiras por eles controladas, FMI e o Banco Mundial: mercados livres e, porque livres, eficientes; privatizações; desregulamentação; Estado fora da economia porque inerentemente corrupto e ineficiente; eliminação de restrições à acumulação de riqueza e à correspondente produção de miséria social.
Foi com estas receitas que se 'resolveram' as crises financeiras da América Latina e da Ásia e que se impuseram ajustamentos estruturais em dezenas de países. Foi também com elas que milhões de pessoas foram lançadas no desemprego, perderam as suas terras ou os seus direitos laborais, tiveram de emigrar.
À luz disto, o impensável aconteceu: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização; o mercado não é, por si, racional e eficiente, apenas sabe racionalizar a sua irracionalidade e ineficiência enquanto estas não atingirem o nível de auto-destruição; o capital tem sempre o Estado à sua disposição e, consoante os ciclos, ora por via da regulação ora por via da desregulação. Esta não é a crise final do capitalismo e, mesmo se fosse, talvez a esquerda não soubesse o que fazer dela, tão generalizada foi a sua conversão ao evangelho neoliberal.
Muito continuará como dantes: o espírito individualista, egoísta e anti-social que anima o capitalismo; o fato de que a fatura das crises é sempre paga por quem nada contribuiu para elas, a esmagadora maioria dos cidadãos, já que é com seu dinheiro que o Estado intervém e muitos perdem o emprego, a casa e a pensão.
Mas muito mais mudará. Primeiro, o declínio dos EUA como potência mundial atinge um novo patamar. Este país acaba de ser vítima das armas de destruição financeira massiça com que agrediu tantos países nas últimas décadas e a decisão 'soberana' de se defender foi afinal induzida pela pressão dos seus credores estrangeiros (sobretudo chineses) que ameaçaram com uma fuga que seria devastadora para o actual american way of life.
Segundo, o FMI e o Banco Mundial deixaram de ter qualquer autoridade para impor as suas receitas, pois sempre usaram como bitola uma economia que se revela agora fantasma. A hipocrisia dos critérios duplos (uns válidos para os países do Norte global e outros válidos para os países do Sul global) está exposta com uma crueza chocante. Daqui em diante, a primazia do interesse nacional pode ditar, não só proteção e regulação específicas, como também taxas de juro subsidiadas para apoiar indústrias em perigo (como as que o Congresso dos EUA acaba de aprovar para o setor automóvel).
Não estamos perante uma desglobalização mas estamos certamente perante uma nova globalização pós-neoliberal internamente muito mais diversificada. Emergem novos regionalismos, já hoje presentes na África e na Ásia mas sobretudo importantes na América Latina, como o agora consolidado com a criação da União das Nações Sul-Americanas e do Banco do Sul. Por sua vez, a União Européia, o regionalismo mais avançado, terá que mudar o curso neoliberal da atual Comissão sob pena de ter o mesmo destino dos EUA.
Terceiro, as políticas de privatização da segurança social ficam desacreditadas: é eticamente monstruoso que seja possível acumular lucros fabulosos com o dinheiro de milhões trabalhadores humildes e abandonar estes à sua sorte quando a especulação dá errado. Quarto, o Estado que regressa como solução é o mesmo Estado que foi moral e institucionalmente destruído pelo neoliberalismo, o qual tudo fez para que sua profecia se cumprisse: transformar o Estado num antro de corrupção.
Isto significa que se o Estado não for profundamente reformado e democratizado em breve será, agora sim, um problema sem solução. Quinto, as mudanças na globalização hegemônica vão provocar mudanças na globalização dos movimentos sociais que vão certamente se refletir no Fórum Social Mundial: a nova centralidade das lutas nacionais e regionais; as relações com Estados e partidos progressistas e as lutas pela refundação democrática do Estado; contradições entre classes nacionais e transnacionais e as políticas de alianças.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3981

Sobre a crise financeira do capitalismo - Karl Marx




"Em um sistema de produção em que toda a trama do processo de reprodução repousa sobre o crédito, quando este cessa repentinamente e somente se admitem pagamentos em dinheiro, tem que produzir-se imediatamente uma crise, uma demanda forte e atropelada de meios de pagamento.

Por isso, à primeira vista, a crise aparece como uma simples crise de crédito e de dinheiro líquido. E, em realidade, trata-se somente da conversão de letras de câmbio em dinheiro. Mas essas letras representam, em sua maioria, compras e vendas reais, as quais, ao sentirem a necessidade de expandir-se amplamente, acabam servindo de base a toda a crise.
Mas, ao lado disto, há uma massa enorme dessas letras que só representam negócios de especulação, que agora se desnudam e explodem como bolhas de sabão, ademais, especulações sobre capitais alheios, mas fracassadas; finalmente, capitais-mercadorias desvalorizados ou até encalhados, ou um refluxo de capital já irrealizável. E todo esse sistema artificial de extensão violenta do processo de reprodução não pode corrigir-se, naturalmente. O Banco da Inglaterra, por exemplo, entregue aos especuladores, com seus bônus, o capital que lhes falta, impede que comprem todas as mercadorias desvalorizadas por seus antigos valores nominais.
No mais, aqui tudo aparece invertido, pois num mundo feito de papel não se revelam nunca o preço real e seus fatores, mas sim somente barras, dinheiro metálico, bônus bancários, letras de câmbio, títulos e valores.
E esta inversão se manifesta em todos os lugares onde se condensa o negócio de dinheiro do país, como ocorre em Londres; todo o processo aparece como inexplicável, menos nos locais mesmos da produção."

Fragmento de "O Capital", Volume 3, Capítulo 30, Capital-dinheiro e capital efetivo, Karl Marx.

O capitalismo chega a seu fim? (Tradução de Valdemar Sguissardi)


Le Monde , Paris, 12.10.08.
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Entrevista concedida por Immanuel Wallerstein, pesquisador do Depto de Sociologia da Universidade de Yale, EUA, ex-presidene da Associação Internacional de Sociologia
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  • O capitalismo chega a seu fim

Le Monde: Signatário do Manifesto do Fórum Social de Porto Alegre (“Doze proposições para um outro mundo possível”), em 2005, o Sr. é considerado um dos inspiradores do movimento altermundialista. O Sr. fundou e dirigiu o Centro Fernand-Braudel para o estudo da economia dos sistemas históricos e das civilizações, da Universidade do Estado de Nova Yorque, em Birghamton. Como o Sr. situa a crise econômica e financeira atual no “tempo longo” da história do capitalismo?
Immanuel Wallerstein: Fernand Braudel (1902-1985) distinguia o tempo da “longa duração”, que vê se sucederem na história humana sistemas regendo as relações do homem com seu meio ambiente material e, no interior dessas fases, o tempo de ciclos longos conjunturais, descritos por economistas como Nicolas Kondratieff (1882-1930) ou Joseph Schumpeter (1883-1950). Estamos hoje claramente numa fase B de um ciclo de Kondratieff, que começou há trinta ou trinta e cinco anos, após um fase A, que foi a mais longa (de 1945 a 1975), dos quinhentos anos da história do sistema capitalista.
Numa fase A, o lucro é gerado pela produção material, industrial ou outra; numa fase B, o capitalismo deve, para continuar a produzir lucro, financeirizar-se e refugiar-se na especulação. Há mais de trinta anos, as empresas, os Estados e as famílias endividam-se massivamente. Estamos hoje na última parte de uma fase B de Kondratieff, quando o declínio virtual torna-se real, em que as bolhas explodem umas após outras: as falências multiplicam-se, a concentração do capital aumenta, o desemprego avança e a economia conhece uma situação de deflação real.
Mas, hoje, este momento do ciclo conjuntural coincide com – e conseqüentemente o agrava – um período de transição entre dois sistemas de longa duração. Penso que de fato entramos, há trinta anos, na fase terminal do sistema capitalista. O que fundamentalmente diferencia esta fase da sucessão ininterrupta dos ciclos conjunturais anteriores é que o capitalismo não consegue mais “tornar-se sistema”, no sentido que lhe dá o físico e químico Ilya Prigogine (1917-2003): quando um sistema, biológico, químico ou social, desvia-se demais e muito freqüentemente de sua situação de estabilidade, não consegue mais reencontrar o equilíbrio, e, então, se observa uma bifurcação.
A situação torna-se caótica, incontrolável pelas forças que a dominaram até então, e vê-se emergir uma luta, não mais entre os “donos” e os adversários do sistema, mas entre todos os atores para determinar o que o vai substituir. Eu reservo o uso do termo “crise” a este tipo de período. Pois bem, estamos em crise. O capitalismo chega a seu fim.
Le Monde: Por que não se trataria antes de uma nova mutação do capitalismo, que já conheceu, além de tudo, a passagem do capitalismo mercantil ao capitalismo industrial; depois, do capitalismo industrial ao capitalismo financeiro?
Immnuel Wallerstein: O capitalismo é onívoro, obtendo o lucro onde ele seja maior num momento dado; não se contenta com pequenos lucros marginais; ao contrário, maximiza-os criando monopólios – ainda recentemente tentou fazê-lo nas biotecnologias e nas tecnologias da informação. Mas eu penso que as possibilidades de acumulação real do sistema atingiram seu limite. O capitalismo, desde seu nascimento na segunda metade do Século XVI, nutre-se do diferencial de riqueza entre um centro, para onde convergem os lucros, e as periferias (não necessariamente geográficas) cada vez mais empobrecidas.
Desse ponto de vista, a recuperação econômica da Ásia do Leste, da Índia, da América Latina constitui um desafio insuperável pela “economia-mundo” criada pelo Ocidente, que não consegue mais controlar os custos da acumulação. As três curvas mundiais dos preços – da mão-de-obra, das matérias-primas e dos impostos – estão, por tudo, em forte alta há decênios. O curto período neoliberal que está se acabando inverteu apenas provisoriamente a tendência: ao final dos anos 1990 esses custos estavam, é verdade, menos elevados quem em 1970, mas estavam muito mais altos que em 1945. Na verdade, o último período de acumulação real – os “trinta anos gloriosos” – somente foi possível porque os Estados keynesianos colocaram suas forças a serviço do capital. Mas, ainda então, o limite foi atingido!
Le Monde: Há precedentes da fase atual, como o Sr. as descreve?
Immanuel Wallertein: Existiram muitos na história da humanidade, contrariamente à imagem, forjada nos meados do Século XIX, de um progresso contínuo e inevitável, inclusive em sua versão marxista. Prefiro me apoiar na tese da possibilidade do progresso, não na de sua inevitabilidade. Certamente, o capitalismo é o sistema que soube produzir, de forma extraordinária e marcante, o máximo de bens e de riquezas. Mas é preciso olhar a soma de perdas – para o meio-ambiente, para as sociedades – que  engendrou. O único bem é aquele que permite obter, para o maior número de pessoas, uma vida racional e inteligente.
Dito isso, a crise mais recente, similar à de hoje, foi o desmoronamento do sistema feudal na Europa, entre os meados dos Séculos XV e XVI, e sua substituição pelo sistema capitalista. Esse período, que culminou com as guerras de religião, viu desmoronar as autoridades reais, senhoriais e religiosas sobre as mais ricas comunidades camponesas e sobre as cidades. Foi ali que se construíram, por tateios sucessivos e de forma inconsciente, soluções inesperadas cujo sucesso acabará por “fazer sistema”, apresentando-se pouco a pouco sob a forma do capitalismo.
Le Monde: Quanto tempo deverá durar a transição atual e no que poderá desembocar?
Immanuel Wallerstein: O período de destruição do valor que encerra a fase B de um ciclo de Kondratieff dura geralmente de dois a cinco anos antes que sejam reunidas as condições de entrada numa fase A, quando um lucro real pode novamente ser conseguido de novas produções materiais descritas por Schumpeter. Mas o fato de que essa fase corresponde atualmente a uma crise do sistema nos fez entrar num período de caos político durante o qual os atores dominantes, à testa das empresas e dos Estados ocidentais, farão tudo o que lhes é tecnicamente possível para reencontrar o equilíbrio, mas é muito provável que não o consigam.
Os mais inteligentes já têm compreendido que teria sido necessário fazer qualquer coisa de inteiramente novo. Mas múltiplos atores já estão agindo, de forma desordenada e inconsciente, para fazer emergirem novas soluções, sem que se saiba inda qual sistema surgirá desses tateios.
Estamos numa período, bastante raro, no qual a crise e a impotência dos poderosos deixam um lugar ao livre arbítrio de cada um: existe hoje um lapso de tempo durante o qual cada um de nós tem a possibilidade de influenciar o futuro por nossa ação individual. Mas como este futuro será a soma do número incalculável destas ações, é absolutamente impossível prever que modelo finalmente se imporá. Dentro de dez anos, pode ser que se veja mais claro; dentro de trinta ou quarenta anos, um novo sistema terá emergido. Creio que é possível tanto ver instalar-se um sistema de exploração, infelizmente, ainda mais violento que o capitalismo, quanto ver, ao contrário, instalar-se um modelo mais igualitário e redistributivo.
Le Monde: As mutações anteriores do capitalismo têm muitas vezes desembocado sobre um deslocamento do centro da “economia-mundo”, por exemplo da bacia mediterrânea para a costa atlântica da Europa, depois para a dos EUA? O sistema por vir estará centrado na China?
Immanuel Wallerstein: A crise que vivemos corresponde também ao fim de um ciclo político, o da hegemonia americana, desencadeada igualmente nos anos 1970. Os EUA continuarão sendo um ator importante, mas não poderão jamais reconquistar sua posição dominante em face da multiplicação dos centros de poder, com a Europa ocidental, a China, o Brasil, a Índia. Um novo poder hegemônico, se a gente se refere ao tempo longo braudeliano, pode levar ainda cinqüenta anos para se impor. Mas eu ignoro qual.
Enquanto se espera, as conseqüências políticas da crise atual serão enormes, na medida em que os “donos” do sistema irão tentar encontrar bodes expiatórios para o desmoronamento de sua hegemonia. Eu penso que a metade do povo americano não aceitará o que está se passando. Os conflitos internos vão, portanto, exacerbar-se nos EUA, que estão a ponto de se tornarem o país mais instável politicamente do mundo. E não esqueçais que nós, os americanos, estamos todos armados...
Depoimento recolhido por Antoine Reverchon.
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Tradução: Valdemar Sguissardi (Piracicaba, 18 de outubro de 2008)


A DIALÉTICA E O MARXISMO: Filosofia e Questões Teóricas

Leandro Konder
(Aula magna proferida na PUC-RJ em 28/03/2003)

Peço licença para começar por uma curiosa experiência vivida há muitos anos, em 1964, no IPM do ISEB. Interrogado por um coronel a respeito de uma palestra que eu havia feito sobre o marxismo, falei em dialética. Para a minha surpresa, o coronel explicou ao sargento datilógrafo: "A dialética é esse negócio que os comunas inventaram para dizer que uma coisa é, mas ao mesmo tempo não é"...

No momento em que ouvi a explicação, por força da situação grotesca, achei-a apenas engraçada. Sinistra, porém cômica. Com o tempo, entretanto, comecei a reconhecer que havia alguma procedência naquela crítica rudemente formulada: de fato, com esse sentido a dialética tem sido - e continua sendo - usada com freqüência.

Essa constatação me levou, muitos anos depois, a escrever um livrinho de divulgação intitulado O que é Dialética, tentando dissipar alguns dos mal-entendidos que circulam em torno da dialética. Não tive a ambição de superar o mal-entendido em geral, porque desconfio que o mal-entendido em geral é insuperável: ele brota incansavelmente das brechas que sempre existem na articulação entre o nosso saber e o real; ele aproveita a inesgotabilidade do real, a irredutibilidade do real ao conhecimento.

O que podemos fazer, reconhecendo as limitações do nosso conhecimento, é admitir com Hamlet que há mais coisas no céu e na Terra do que supõe a nossa filosofia. A tradução usual acrescentou "vã" filosofia, mas o que Shakespeare escreveu foi : "There are more things in Heaven and Earth, Horatio, / Than are dreamt of in our philosophy" (Hamlet, primeiro ato, quinta cena). A filosofia pode se reconhecer como limitada sem se considerar vã.

A construção do conhecimento necessita de desconfiança em relação a si mesma e também de autoconfiança. Em que a dialética, na concepção de Marx, pode contribuir para a satisfação de cada uma dessas necessidades?

A contribuição para desconfiança vem pela ligação com o conceito de ideologia: a distorção ideológica pode ser tão sutil que eu não a perceba infiltrar-se em meu ponto de vista, em minhas razões, em minha ciência, em minhas intuições.

A contribuição para a autoconfiança vem pela ligação com o conceito de práxis, a atividade do sujeito que de algum modo aproveita algum conhecimento ao interferir no mundo, transformando-o e se transformando a si mesmo.

Cabe à dialética, em Marx, articular a crítica das ideologias à práxis.

Se a crítica das ideologias não se ligar à práxis, ela tende a se deteriorar, tende a se reduzir a mera ...distorção ideológica.

Se a práxis não se ligar a uma constante crítica das ideologias, ela degenera em pragma.

De fato, as três se condicionam reciprocamente; a práxis precisa da crítica das ideologias para melhorar o conhecimento com base no qual se orienta; a crítica das ideologias precisa ao mesmo tempo contribuir para a orientação e para o questionamento da práxis. Cada uma das duas, então, precisa da outra. E ambas necessitam da dialética (como a dialética necessita de ambas).

O conceito de práxis é decisivo na distinção entre a dialética de Marx e a do seu mestre, Hegel. É verdade que em ambos a dialética se funda como uma ontologia e não como uma teoria do conhecimento. O que conta, para os dois, é o movimento do ser, suas contradições. No entanto, eles divergem na compreensão desse ser que se move e no entendimento de qual possa ser a sua relação com o conhecimento.

Para Hegel, ou o conhecimento expressa o ser e o ilustra, ou então se afasta do ser, torna-se mero equívoco e não interessa. Para Marx, os homens, sujeitos da práxis, se servem daquilo que conhecem ou julgam conhecer.

Na práxis, o sujeito age conforme pensa, a prática "pede" teoria, as decisões precisam ter algum fundamento consciente, as escolhas devem poder ser justificadas. Na práxis, o sujeito projeta seus objetivos, assume seus riscos, carece de conhecimentos. Na oitava das "Teses sobre Feuerbach", Marx distingue explicitamente a práxis e a "compreensão" ["Begreifen"] da práxis (quando afirma que os mistérios em que a teoria tropeça são solucionados na práxis e na compreensão da práxis). (MARX, vol. III).

Pouco antes, em sua polêmica com a "sagrada família" dos hegelianos, Marx havia escrito: "A verdade é, para o senhor Bauer, tal como para Hegel, um automaton que se prova por si mesmo. O ser humano só tem que segui-la" (MARX vol. II).

A teoria, então, tem que "morder" as diferentes ações transformadoras, e pode não conseguir fazê-lo, ou pode "mordê-las" muito deficientemente. Em todo caso, fica claro que a interferência da construção do conhecimento na práxis, para Marx, se reveste de uma dramaticidade e assume uma importância que a gnosiologia hegeliana jamais reconheceria.

Hegel admitia que no movimento do ser havia um momento necessário em que aparecia a liberdade, o sujeito humano manifestando seu poder de interpretar o real e tomar iniciativas; esse poder, contudo, acabava sendo bastante restrito, era rigidamente condicionado, subordinado a uma racionalidade ainda sufocante.

Em Marx, surge a possibilidade de se pensar o sentido da história não a partir de uma razão constituída, mas a partir de uma razão constituinte. O sentido do nosso movimento não é anterior à nossa intervenção: é instaurado por nós, dentro dos limites que nos são impostos pelo quadro em que nos inserimos.

Sem se entregar a uma visão irracionalista da história, Marx abre caminho para uma dialética que pode superar o determinismo, isto é, pode acolher a riqueza do subjetivo na objetividade, ou, em outras palavras, pode continuar respeitando a necessidade e ao mesmo tempo pode assimilar a liberdade (sem estreitá-la).

Na história do marxismo, entretanto, a direção em que se moveu a dialética de Marx não foi tão fecunda como se poderia esperar. O determinismo, expulso da doutrina pela porta da frente, logo voltou a infiltrar-se nela pela porta dos fundos.

As urgências da luta política criaram condições nas quais os militantes organizados eram extremamente vulneráveis ao sentimento gratificante de se acharem na "crista da onda" do "progresso", e esse sentimento, conforme observou Walter Benjamin, inseria os homens num tempo "vazio e homogêneo", desviando-os do desafio que consiste em "escovar a história a contrapelo" (BENJAMIN).

Quando Marx, aos 25 anos, propôs que a revista alemã, que ia ser lançada em Paris sob sua direção, tivesse como lema "uma crítica implacável a tudo que existe" (MARX, vol. I), o movimento operário não tinha, por assim dizer, nada a perder.

No final do século XIX, porém, os socialistas haviam criado os primeiros partidos de massa, os primeiros sindicatos de massa, a segunda Associação Internacional dos Trabalhadores, e possuíam, portanto, todo um patrimônio político pelo qual deveriam zelar. Convinha-lhes, então, agir com alguma prudência.

No novo quadro, reconhecia-se a verdade enunciada pelo velho Goethe, no seu Wilhelm Meister: "São poucos os que refletem e são capazes de agir. A reflexão amplia, mas enfraquece; a ação revigora, mas limita"( GOETHE, VIII, cap. 5).

Entre os poucos que uniam convincentemente reflexão e ação, naquele momento, estava Karl Kautsky, líder e principal teórico do Partido Social-Democrático dos Trabalhadores Alemães. A influência de Kautsky foi enorme. Segundo o historiador francês Georges Haupt, pela seleção dos textos que considerava importantes de Marx e pela concatenação de tais textos, foi Kautsky quem criou "o marxismo" (termo que Marx recusava). (HAUPT).

O "marxismo" que assim nascia se baseava numa opção problemática. Dissemos que Kautsky unia convincentemente a reflexão e a ação. Devemos perguntar, porém, de que reflexão e de que ação se trata.

Kautsky nunca deixou de ser darwinista e adepto da teoria evolucionista. Por isso, nunca se interessou de fato pela dialética e difundiu com êxito sua leitura da concepção de Marx como um determinismo histórico. Para ele, o novo não vinha de uma ruptura: era o resultado do lento e inexorável amadurecimento de algo que já existia antes e ainda não era percebido e afinal passou a ser enxergado.

A idéia ainda ganhou mais força com a publicação, na época, de um livro escrito pelo genro de Marx, Paul Lafargue, intitulado, sintomaticamente, O Determinismo Econômico de Karl Marx. (LAFARGUE).

A convicção de serem os representantes de um movimento revolucionário objetivo, que estava se realizando inexoravelmente, consolava e reanimava os lutadores nos momentos difíceis, ajudando-os a suportar derrotas, porém, quando se organizava em forma de teoria, assumindo a forma de um determinismo ou "mecanicismo fatalista", atrofiava-lhes a capacidade de tomar iniciativas, tornava-se "causa de passividade", segundo a análise feita por Antonio Gramsci (vol. I, p. 107) (GRAMSCI).

A dialética se retraiu. Apesar das advertências feitas por Lukács em 1922, em História e Consciência de Classe (LUKACS), apesar das lúcidas observações de Gramsci e Benjamin, a dialética encontrou pouco espaço para florescer no espaço ocupado pelo "marxismo oficial", tanto na versão social-democrática como na nova versão leninista.

Foi grave, mesmo, o que aconteceu com o pensamento de Marx no uso que lhe deram os políticos e teóricos integrados ao movimento dos partidos comunistas: instituiu-se uma "ortodoxia" posta sob o controle dos dirigentes supremos do movimento comunista mundial e se reduziu drasticamente o espaço da reflexão livre ligada à ação.

A dialética não podia deixar de se ressentir do cerceamento do diálogo (convém não esquecermos que os dois termos nascem irmanados: diálogo vem de dia+logos e dialética vem de dia+lêgein).

É certo que dialética e dialógica não são sinônimos; existem procedimentos dialógicos que não são dialéticos, quer dizer não reconhecem a centralidade da contradição. No entanto, quando as condições históricas se tornam muito desfavoráveis ao diálogo, elas tendem a prejudicar a dialética.

A divisão dos socialistas na Europa mostrou que as duas tendências principais do movimento não estavam preparadas para pensar e realizar a unidade na extrema diversidade. Divididos, social-democratas e comunistas acabaram, por diferentes caminhos, se acumpliciando com a depreciação da dialética.

Os social-democratas tenderam a reduzir Marx a um teórico importante, mas igual a muitos outros, autor de umas tantas idéias que poderiam ser ecleticamente aproveitadas em contextos específicos. Eduard Bernstein propunha mesmo, francamente, substituir a dialética pelo velho e bom empirismo inglês.

E os comunistas tenderam a reduzir a dialética - pragmaticamente - àquilo que o coronel do IPM do ISEB caracterizou como o que os "comunas" inventaram para dizer que uma coisa ao mesmo tempo é e não é...

Nos termos da frase de Goethe, agora modificada, a ação limitava e não revigorava a reflexão, e a reflexão enfraquecia a ação sem amplia-la.

O que era realmente grave é que não se tratava de mero descuido. O filósofo tcheco Karel Kosik observou que no sistema político adotado pelos comunistas havia uma polarização entre o detentor de um saber proporcionado pela teoria revolucionária (o "Comissário do Povo") e o homem comum, a quem a "Verdade" está sendo levada. Quanto mais este último deixasse de formular dúvidas ou objeções, mais ele seria considerado "bem encaminhado" pelo primeiro. O funcionamento do sistema, então, teve como conseqüência inevitável, de um lado, o fortalecimento do dogmatismo do "Comissário" e, de outro, a passividade do consumidor da doutrina (KOSIK).

Houve, sem dúvida, resistências a esse processo. Além dos já lembrados Lukács, Benjamin e Gramsci, diversos outros nomes merecem ser lembrados, como, entre muitos outros, Adorno e Horkheimer. É muito significativo, porém, que esses autores tenham ficado marginalizados, ou no mínimo postos sob áspera suspeita, com escassa influência real sobre o grande movimento político que se realizava, então, em nome do marxismo.

O processo da derrocada da União Soviética mudou o quadro. Livres do pesado compromisso - que lhes era cobrado - de proteger e preservar o sistema dos partidos comunistas e o vasto e imponente aparelho estatal de uma superpotência, os marxistas podiam, dentro de certos limites, voltar a sentir alguma proximidade com a disponibilidade, alguma afinidade com o despojamento que tinha o jovem Marx para uma "crítica implacável a tudo que existe".

Se existe alguma possibilidade de revitalização do marxismo como teoria, ela depende, certamente, dessa recuperação das raízes da dialética. Nas atuais circunstâncias, a dialética enfrenta o desafio de um recomeço.

Cabe-lhe resgatar a força da dialógica, que chegou a desempenhar um papel tão importante nos escritos de Platão, abrindo espaço no movimento do pensamento para a incorporação necessária do discurso do Outro, como pré-requisito para a elevação da filosofia em direção ao mundo das idéias.

Cabe-lhe associar a radicalização de sua vocação crítica ("mudar a vida!", conclamava o poeta Rimbaud) a uma modéstia metodológica e a uma vigilância autocrítica que lhe permitam enxergar suas próprias limitações e a estimulem a buscar naquilo que surge de novo no campo de seus interlocutores/contraditores elementos que podem - surpreendentemente - ensejar a ampliação de seus horizontes.

A dialética, como modo de pensar, suporta mal qualquer tentativa de defini-la. Algumas das suas características mais importantes, contudo, podem ser determinadas aproximativamente. Podemos constatar, por exemplo, que ela depende essencialmente da capacidade do sujeito de apreender o novo e a contradição. Ou, em outras palavras: depende do reconhecimento pelo sujeito da "formação ininterrupta da novidade qualitativa" (LUKÁCS, p. 260) e da sua capacidade de se orientar no quadro das contradições com que se defronta e que inevitavelmente o envolvem.

Como o novo está sempre surgindo e as contradições estão constantemente ultrapassando os limites da sua compreensão, o sujeito, na dialética, não pode deixar de ter no infinito uma referência fundamental: a infinitude é a categoria que lhe permite entender o real como efetivamente inesgotável, irredutível ao saber.

Apesar das diferenças (que não devem ser subestimadas), cumpre reconhecermos, então, uma convergência entre a dialética e a mística: em ambas, o sujeito se sente em face de algo maior do que aquilo que está ali, quer dizer, se sente relacionado a algo que transcende a realidade imediata, algo que vai além da realidade restritamente presente, que o seu conhecimento poderia pretender dominar e exaurir.

Nas décadas de maior influência do movimento comunista, o "marxismo oficial" se recusava a admitir esse ponto de convergência e fechava obstinadamente os olhos diante de obras tão instigantes como as de mestre Eckhardt, Nicolau de Cusa e Blaise Pascal.

Outro obstáculo no qual o "marxismo oficial" tropeçava era aquele que se refere às relações da dialética com a natureza. Com uma curiosidade digna de admiração, porém manifestando um espírito um tanto amadorístico, o velho Engels fez algumas observações a respeito do que seria as "leis da dialética" no âmbito das ciências naturais; tomou algumas notas e as deixou com pessoas que as editaram em livro, sustentando a tese de que havia uma dialética que abarcava desde a natureza até a história.

Com a "dialética da natureza" se atenuava a ruptura da passagem dos processos naturais aos processos históricos, as categorias básicas da dialética eram trabalhadas de maneira a valer para os dois níveis, o que acarretava certa "naturalização" da história.

A teoria da "dialética da natureza" exerceu uma forte influência até mesmo sobre alguns marxistas argutos, como Henri Lefebvre, que escreveu: "o homem continua sendo um ser da natureza, mesmo quando se apropria dela. Às vezes, ele chegou a crer que seus fins se opunham à natureza: sua liberdade, por exemplo. Porém essa liberdade só tem sentido e realidade na natureza e pela natureza" (LEFEBVRE).

Hoje em dia, preocupados com a dilapidação dos recursos - finitos! - do nosso planeta, será muito difícil encontrarmos alguém que nos assegure que o desperdício de água, as atividades industriais danosas ao meio ambiente e a destruição da floresta amazônica são "naturais".

Uma terceira "derrota" histórica da dialética decorreu do fato de que, negada a sua origem (na relação sujeito/objeto), deixava de ser reconhecido o poder que os sujeitos têm de fazer escolhas, de tomar decisões, antevendo os objetivos que pretendem alcançar. Ao invés de pensar a totalização a partir da práxis, os adeptos da "dialética da natureza" impuseram um concepção prepotente de totalidade, fundindo (e confundindo) o natural e o social.

Hoje, a dialética enfrenta outras batalhas. Vive, como diria Merleau Ponty, outras "aventuras" (MERLEAU-PONTY). Recusa-se, como sempre, a se deixar enquadrar como "método" ou - o que é pior - como "doutrina". Caso ela se deixasse enquadrar como uma doutrina, simplificaria muito o nosso trabalho como professores, na educação dos jovens. Acontece, entretanto, que os jovens para os quais nós transmitiríamos a doutrina seriam, afinal, tudo que possamos imaginar, menos ... dialéticos.

Como a dialética vem entrando no século XXI ? Ela se sabe mais ampla do que o marxismo. Pode-se ser dialético sem ser marxista (como era o caso de Gerd Bornheim e, em certo sentido, do padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, dois filósofos importantes, recentemente falecidos, e que estão nos fazendo muita falta).

Também é evidente que se pode ser marxista sem ser verdadeiramente dialético.

A dialética, se me permitem dizê-lo cum grano salis, tem simpatizado com o marxismo, porém não parece disposta a lhe assegurar que ela é a mulher da vida dele. Por fidelidade ao Modernismo, com quem viveu bons momentos, trata o Pós-Modernismo com frieza. Faceira, insinua, contudo, que de repente pode mudar de atitude.

Não ficou nem um pouco magoada quando José Guilherme Merquior se referiu a ela como uma "dama de costumes fáceis" (MERQUIOR, p. 178). Prefere, entretanto, o elogio que o poeta Bertolt Brecht fez ao seu senso de humor. Imagino-a dizendo:

- Brecht tinha razão. Quem não tiver senso de humor nunca me compreenderá.

Bibliografia

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, vol. I, Trad. Sérgio Paulo Rouanet, SP, Brasiliense, 1985.

GOETHE,W. Wilhelm Meister. Ed. Goldmann, 1975.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, trad. Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, RJ, Civilização Brasileira, 1999.

HAUPT, Georges. L'historien et le mouvement social, Paris, Maspero, 1971.

KOSIK, Karel. "Moral da Dalética e Dialética da Moral", in Moral e Sociedade, Rio ed. Paz e Terra, 1968.

LEFEBVRE, Henri. Que es la dialectica. Trad. Rodrigo Garcia Treviso. Buenos Aires, La Plêiade, 1975.

LUKACS, Georg. Geschichte und Klassenbewusstsein. Neuwied & Berlim, luchterhand, 1970.

MARX, Karl. Marx-Engels-Werke. Berlim, Dietz, volumes 1, 2 e 3, 1962 e 1964.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Les aventures de la dialectique, Paris, Gallimard, 1953.

MERQUIOR, José Guilherme. As Idéias e as Formas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Londres, Penguin, 1985.



Leandro Konder é filósofo

A HISTÓRIA NO PENSAMENTO DE MARX

Marilena Chauí *


  • Desenvolvimento e devir

Ao evidenciar que a distribuição dos constituintes do processo de trabalho determina a forma da produção, isto é, as relações de produção determinam as forças produtivas, e que a distribuição, pressuposto do processo de produção, é reposta por este como um momento que lhe é imanente, Marx pode elaborar o conceito de modo de produção. Este se define como a determinação das forças produtivas pelas relações de produção e pela capacidade do processo produtivo de repor como um momento interno necessário aquilo que, de início, lhe era externo.

O conceito de modo de produção esclarece uma distinção que opera no tratamento dado por Marx à história: a distinção entre devir e desenvolvimento. O devir é a sucessão temporal dos modos de produção ou o movimento pelo qual os pressupostos de um novo modo de produção são condições sociais que foram postas pelo modo de produção anterior e serão repostas pelo o novo modo. O desenvolvimento é o movimento interno de um modo de produção para repor seu pressuposto, transformando-o em algo posto; refere-se, portanto, a uma forma histórica particular, ou melhor, é a história particular de um modo de produção, cujo desenvolvimento é dito completo quando o sistema tem a capacidade para repor internamente e por inteiro o seu pressuposto. Uma forma histórica está desenvolvida quando se tornou capaz de transformar num momento interior a si aquilo que, no início, lhe era exterior, proveniente de uma forma histórica anterior, ou seja, quando realiza uma reflexão, de tal maneira que a exterioridade é negada como exterioridade para ser posta como interioridade na nova formação social.

O devir temporal se refere ao surgimento das forças produtivas, portanto, às mudanças nas relações dos homens com a natureza, podendo ser pensado como linear, sucessivo e contínuo. O desenvolvimento imanente de uma forma histórica se refere à reflexão realizada pelo modo de produção ou o movimento cíclico pelo qual retoma seu ponto de partida para repor seus pressupostos. No entanto, justamente porque se trata de uma reflexão realizada pela forma histórica, o retorno ao ponto de partida o altera, de maneira que o desenvolvimento não é um eterno retorno do mesmo e sim dialético, atividade imanente transformadora que nega a exterioridade do ponto de partida ao interiorizá-lo para poder conservar-se e, ao fazê-lo, põe uma nova contradição no sistema.

A distinção entre devir e desenvolvimento não significa que Marx não os tenha pensado juntos, pois o devir depende do desenvolvimento, ou seja, do que acontece à forma completa de um modo de produção para que ela possa colocar os pressupostos do modo de produção seguinte: a forma completa termina quando, ao repor completamente seus pressupostos, ela põe uma contradição interna nova que ela não pode resolver sem se destruir. Essa contradição insolúvel é posta por ela e se torna pressuposta na forma social seguinte. O desenvolvimento completo revela a finitude da forma histórica e a expõe à infinitude do devir. Em outras palavras, é impossível pensar o devir sem o desenvolvimento e este sem aquele, pois a sucessão temporal das formas históricas ou dos modos de produção depende da reflexão de cada uma delas ou de seu desenvolvimento completo . O entrecruzamento necessário do devir e do desenvolvimento explica a afirmação “o novo nasce dos escombros do velho”.

  • Formas pré-capitalistas e forma capitalista]

Em Trabalho e Reflexão, J. A. Giannotti (1983) acompanha a exposição sobre as formas históricas pré-capitalistas e a forma capitalista, apresentada de Marx nos Grundrisse, enfatizando que sua principal lição está em mostrar que não podemos encontrar uma matriz única para o social.

Na medida em que a produção pressupõe a distribuição dos componentes do processo de trabalho, verifica-se que um modo de produção tem duas faces, constituídas pelo processo de trabalho: a face ativa do processo, isto é, a divisão social do trabalho, e a face passiva do processo, isto é, a forma da propriedade, determinada pelo modo de apropriação de um dos componentes do processo de trabalho. Nos Grundrisse, Marx denomina situação histórica 1 aquela em que a propriedade é a do objeto de trabalho, da matéria do trabalho. Essa situação histórica ocorre nas formações sociais mais antigas, nas quais a propriedade é a propriedade da terra, ainda que em cada formação social varie a maneira como essa propriedade se realiza (donde a diferença entre a formação asiática, a greco-romana e a germânica). Na situação histórica 2, a propriedade é a do instrumento de trabalho, como é o caso, por exemplo, das corporações medievais, pois embora os artesãos não tenham a propriedade da terra, que pertence aos senhores feudais, entretanto, no interior do processo de trabalho, são proprietários dos instrumentos de trabalho. Na situação histórica 3, a propriedade é o trabalho, ou seja, o trabalhador é escravo. Essas formas de propriedade não são excludentes, mas podem combinar-se de várias maneiras sendo por isso mais importante determinar qual é a propriedade que, embora co-existindo com as outras, predomina e define a formação social, decidindo todo o restante do processo de trabalho e determinando as relações sociais. As situações históricas 1, 2 e 3 constituem o que Marx chama de formas pré-capitalistas da economia.

Como observa Giannotti (1983), ao apresentá-las como situações históricas possíveis, Marx evidencia a impossibilidade objetiva de subordinar o social a uma única matriz, pois esta matriz variará dependendo da forma da propriedade dos componentes do processo de trabalho. Por esse motivo, Giannotti considera que a apresentação das formas históricas possíveis não é a apresentação do devir dos modos de produzir (não é a sucessão temporal dessas formas): o emprego do termo “histórica” para referir-se a cada uma das situações tem o significado amplo de oposição ao que é natural, pois cada situação está referida aos componentes do processo de trabalho e, por conseguinte, à diferença entre o propriamente humano e a natureza. Assim sendo, a expressão pré-capitalista não é tomada no sentido de antecedente do capitalismo, mas o “pré” significa “tudo o que não é capitalista”. É bem verdade, escreve Giannotti, que Marx poderia ter substituído “pré-capitalista” por “não-capitalista”, e se não o fez não podemos eximi-lo da responsabilidade teórica de não haver explicado o emprego dessa expressão ambígua.

Qual a diferença entre pré-capitalista e capitalista, e como Marx formula a passagem de uma formação pré-capitalista a uma capitalista?

Todo modo de produção, do ponto de vista de sua emergência, significa sempre a passagem do natural para o histórico, portanto, a separação entre natureza e história ou a negação da natureza pelo processo de trabalho. No entanto, Marx observa que nas formas que denomina de pré-capitalistas a natureza é o pressuposto – a ligação do corpo dos homens com a terra como seu “corpo inorgânico” –, enquanto no caso do capitalismo o pressuposto é inteiramente histórico – o trabalho livre e a separação entre o trabalhador e os meios de produção. Além disso, e, sobretudo, é característica própria das formas pré-capitalistas que nelas o movimento do desenvolvimento ou da reposição dos pressupostos nunca possa ser completo, sobrando sempre um resto que o sistema não repõe e que permanece como pressuposto. Há um resíduo de natureza que as formas pré-capitalistas nunca conseguem negar inteiramente e transformar em história. Ao contrário, a forma capitalista ou o modo de produção capitalista é o único histórico de ponta a ponta, nele não sobrando nada que seja natural. Eis porque nele a ideologia tem uma força imensa, pois sua função é introduzir o natural na história, naturalizar o que é histórico. Com efeito, se tudo é histórico, então tudo depende da ação humana e das circunstâncias, de maneira que a contingência desse modo de produção é um dado inarredável, surgindo, assim, a possibilidade de destruí-lo pela ação humana. Para impedir essa possibilidade, é preciso assegurar na representação dos sujeitos sociais que esse modo de produção é necessário, racional, imutável e universal, ou seja, natural.

Quatro dissoluções são necessárias para que o modo de produção capitalista possa emergir no devir temporal: primeiro, dissolução do relacionamento com a terra enquanto corpo inorgânico do trabalho, ou seja, dissolução da relação do sujeito com a condições naturais da produção; segundo, dissolução daquelas relações sociais e econômicas em que o trabalhador é proprietário dos instrumentos de trabalho; terceiro, dissolução do fundo de consumo com que a comunidade garantia a sobrevivência do trabalhador durante o processo de trabalho; quarto, dissolução das relações econômicas em que o trabalhador, como escravo ou servo, pertence às condições da produção. Ora, cada uma dessas dissoluções indica a dissolução de uma das formas pré-capitalistas, de sorte que o aparecimento temporal do modo de produção capitalista é a dissolução de todas as formas pré-capitalistas.

No entanto, é significativo observar que a diferença entre um modo de produção pré-capitalista e o capitalista, se acompanharmos a Crítica da filosofia do direito de Hegel e A Ideologia Alemã, não se dá apenas como presença, no primeiro, e ausência, no segundo, de um resíduo de natureza na história, como sugerem alguns textos dos Grundrisse. Nessas obras, Marx afirma que o modo de produção da vida material está sempre cindido pela contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção ou as formas da propriedade, que determinam as operações da produção, a distribuição, a troca e o consumo. As forças produtivas configuram o conteúdo dos relacionamentos dos homens com a natureza e consigo mesmos, isto é, configuram o conteúdo dessa relação, ou seja, o trabalho; em contrapartida, as relações sociais de produção configuram as formas do processo produtivo, ou seja, a propriedade. Em suma, o conteúdo do modo de produção é determinado pelo trabalho e a forma do modo de produção é determinada pela propriedade. Terminado o comunismo primitivo, o equilíbrio entre as forças produtivas e as relações sociais de produção cede lugar à contradição porque começa a haver luta pela apropriação do excedente. Nessa luta, as forças produtivas se desenvolvem ao máximo e fazem explodir as relações sociais de produção. Portanto, nessas duas obras, o desenvolvimento da contradição é o desenvolvimento da luta de classes e esse desenvolvimento explica o devir temporal dos modos de produção. Sob esta perspectiva, podemos dizer que o modo de produção capitalista, como qualquer outro modo de produção, surge historicamente quando se completam a contradição e a luta de classes do modo de produção anterior.

É essa análise histórica do devir, feita nessas duas obras, que leva Marx a abrir o Manifesto do Partido Comunista com a afirmação de que a história das sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classes. Em outras palavras, na perspectiva da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de A Ideologia Alemã e do Manifesto, o fio que tece a história é o desenvolvimento das forças produtivas, desenvolvimento que é contraditório com as relações sociais de produção e por isso o fio é rompido pela luta de classes. Esse fio produz o movimento imanente ou o desenvolvimento de uma forma singular, um modo de produção determinado, e a ruptura desse fio pela luta de classes engendra o devir histórico dos modos de produção.

A diferença entre essas obras e os Grundrisse no que respeita à descrição do processo histórico indica que a concepção de história em Marx está longe de ser cristalina, transparente e unívoca, suscitando controvérsias e críticas.

  • Racionalismo determinista
Num ensaio intitulado “O marxismo: balanço provisório”, Cornelius Castoriadis (1975) critica a teoria marxista da história que, por não ter conseguido ultrapassar o racionalismo objetivo de Hegel, é, afinal, apenas mais uma filosofia da história. A objeção central de Castoriadis à teoria da história de Marx é a ausência da ação consciente e autônoma dos homens numa história cujo motor é a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção que simplesmente os instrumentaliza para realizar-se ás custas deles. Quanto à filosofia da história marxista, a objeção se volta contra o determinismo, que perde de vista a história como criação.

Para Marx, escreve Castoriadis, a análise econômica do capitalismo é o ponto no qual deve concentrar-se o núcleo da teoria da história, mostrando que esta é capaz de fazer coincidir sua dialética com a dialética do real histórico e que os fundamentos e a orientação da revolução surgem do movimento do próprio real.

O núcleo da análise econômica de Marx são as contradições do capitalismo em cujo centro se encontra uma contradição determinada, aquela entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção ou a forma da propriedade capitalista. Ora, hoje sabe-se que a análise econômica de Marx não pode ser mantida nem em suas premissas nem em seu método nem em sua estrutura, pois sua teoria econômica enquanto tal ignora a ação das classes sociais e, portanto, o efeito das lutas operárias sobre o funcionamento da economia capitalista, bem como o efeito da organização da classe capitalista para dominar as tendências “espontâneas” da economia. A negligência sobre tais efeitos decorre da própria teoria, visto que nela o capitalismo reifica completamente os homens ao transformá-los em coisas e os submete a leis econômicas que não diferem das leis naturais, salvo pelo fato de que usam as ações conscientes dos homens como instrumento inconsciente de sua realização. Sem dúvida, a reificação existe, mas não pode ser completa, pois se o fosse, o sistema desabaria instantaneamente – a contradição última do capitalismo está na necessidade que o sistema tem, a um só tempo, da atividade propriamente humana e de submetê-la e reduzi-la ao mínimo possível.

Essas primeiras considerações levam Castoriadis a enumerar os aspectos inaceitáveis da teoria da história marxista: 1) não se pode dar à economia o lugar central que Marx lhe dava e ela não pode ser considerada autônoma, com leis próprias independentes das outras relações sociais; 2) é preciso reformular a categoria de reificação e com isso toda a teoria da história de Marx; 3) não é verdade que, a um certo estágio do desenvolvimento, as forças produtivas cessam de se desenvolver porque entram em contradição com as relações de produção existentes ou as relações de propriedade – isso não é uma contradição e sim, no máximo, uma tensão que pode ser, e tem sido, resolvida pelo sistema; 4) não se pode passar da afirmação da determinação material da existência humana à redução da produção ou do trabalho às forças produtivas e, portanto, à técnica (supostamente dotada de desenvolvimento autônomo), deixando as demais atividades humanas na condição de “superestruturas”; 5) na fase presente do capitalismo, o desenvolvimento das forças produtivas ou da técnica não é autônomo, e sim planejado, orientado e dirigido explicitamente para os fins que as classes dominantes determinam; não há passividade social, pois o desenvolvimento da técnica não é o motor da história nem possui um significado univoco e fechado; 6) não se pode estender para todas as sociedades categorias que só têm sentido no capitalismo desenvolvido, a menos que a teoria se baseie no postulado escondido de uma natureza humana inalterável cuja motivação predominante é econômica; 7) é impossível negligenciar que a consciência humana sempre foi e é um agente transformador e criador, uma consciência prática, uma razão operante que não se reduz a uma modificação do mundo material; é preciso, portanto, recusar a “ideologia marxista” ou o “idealismo técnico”, no qual as idéias técnicas fazem a história e a consciência humana está sempre enganada e iludida.

Esse conjunto de aspectos aponta para o núcleo da teoria da história de Marx como um determinismo econômico no qual, apesar das declarações do próprio Marx, a luta de classes não é o motor da história, mas um anel numa cadeia causal estabelecida na infra-estrutura técnico-econômica, visto que as classes são instrumentos nos quais se encarna a ação das forças produtivas. As classes são atores no sentido teatral do termo; são agentes inconscientes do processo histórico, mesmo quando têm consciência de classe, pois, “não é a consciência dos homens que determina seu ser social, mas seu ser social que determina sua consciência”. O conservadorismo da classe no poder e o revolucionarismo da classe ascendente estão predeterminados por sua situação na produção, de maneira que não há lugar para a ação autônoma das massas.

O fundamento da teoria da história de Marx, de sua concepção política e do programa revolucionário é uma filosofia da história racionalista. Visto que o racionalismo filosófico pressupõe e demonstra que a totalidade da experiência é exaustivamente redutível a determinações racionais, a filosofia da história marxista oferece de antemão a solução dos problemas que coloca, ou, como escreve Marx, os homens só colocam os problemas que podem resolver. O marxismo, portanto, não ultrapassa a filosofia da história, mas é apenas mais uma filosofia da história que não examina a racionalidade do mundo (natural e histórico) porque se dá previamente um mundo racional por construção.

O racionalismo de Marx não é subjetivo (à maneira de Descartes ou Kant) e sim objetivo (à maneira de Hegel), ou seja, o real é racional e o racional é real. A história é racional em três sentidos. O objeto da história passada é racional porque um objeto cujo modelo é o das ciências naturais: forças agindo sobre pontos de aplicação definidos produzem os resultados predeterminados segundo um grande esquema causal que deve explicar a estática e a dinâmica da história, a constituição e o funcionamento de cada sociedade, bem como o desequilíbrio e a perturbação que devem conduzir a uma forma nova. O objeto da história futura é igualmente racional e realizará a razão num segundo sentido: não apenas como fato (passado), mas também como valor. A história por vir será o que ela deve ser, verá nascer uma sociedade racional que encarnará as aspirações da humanidade e onde o homem será enfim humano (isto é, sua existência e sua essência coincidirão; seu ser efetivo realizará seu conceito). Enfim, a história é racional num terceiro sentido: da ligação do passado com o futuro, da passagem do fato ao valor, as leis quase-naturais cegas abrem caminho para uma humanidade livre, a liberdade emergindo do seio da pura necessidade; há uma razão imanente às coisas que fará surgir uma sociedade miraculosamente conforme à nossa razão.

O racionalismo objetivista só pode ser um determinismo, pois afirmar que o passado e o futuro são integralmente compreensíveis é o mesmo que afirmar a existência de uma causalidade sem falhas. Mas isso é inaceitável. É verdade que não podemos pensar a história sem a causalidade e que é na história que melhor compreendemos o sentido da causalidade (na história, o ponto de partida é uma motivação que podemos compreender, enquanto não podemos compreender, mas apenas constatar, o encadeamento causal dos fenômenos naturais). É verdade que há o causal na vida social e histórica porque há o racional subjetivo –motivação, plano e projeto– e há também o racional objetivo porque as relações causais naturais e as necessidades puramente lógicas estão constantemente presentes nas relações históricas; e além disso, há ainda o “causal bruto”, que constatamos sem poder deduzir de relações racionais subjetivas ou objetivas, correlações de que ignoramos o fundamentos, regularidades de comportamento que permanecem como puro fato. No entanto, não é possível integrar todas essas causalidades e todas essas racionalidades num determinismo total do sistema, mesmo porque há camadas do social em que há relações não-causais. O não-causal não é apenas o imprevisível, mas é sobretudo criador, posição de um novo tipo de comportamento, instituição de uma nova regra social, invenção de um objeto novo, algo que não pode ser deduzido das condições precedentes. “A história não pode ser determinista porque é o campo da criação” (Castoriadis, 1975: 61).

A filosofia da história marxista é incapaz de alcançar o núcleo criador da história porque incapaz de lidar com as significações históricas.

Engels afirma que a história é o campo das ações inconscientes e dos fins não desejados. No entanto, não percebe o mais o importante, isto é, que essas ações e esses fins se apresentam como coerentes, dotados de significação, obedecendo a uma lógica que não é subjetiva (posta por uma consciência) nem objetiva (como a que há na natureza), mas uma lógica histórica. É assim que surge a significação capitalismo, um sistema inesgotável de novas significações, que, por meio de conexões causais, confere unidade a todas as manifestações da sociedade capitalista, dando sentido aos fenômenos e excluindo os fenômenos que não têm sentido para essa sociedade. Essa significação global dá à sociedade a unidade de um mundo (institui uma cultura, ordena os comportamentos por meio de regras jurídicas e morais aparentadas profunda e misteriosamente com o modo de trabalho e de produção, determina a estrutura familiar e a educação das crianças, define uma estrutura da personalidade, instaura uma forma da religião e da sexualidade, uma maneira de comer, de dançar, etc.). Graças a ela, tudo o que se passa no sistema é produzido em conformidade com o “espírito do sistema”, tende a reforçá-lo mesmo quando se opõe a ele e, no limite, tende a derrubá-lo.

Ora, do ponto de vista da causalidade, essa significação é, de alguma maneira, como que dada de antemão, predetermiando e sobredeterminando os encadeamentos causais, a serviço de uma intenção que não é de ninguém. Assim, todo o problema da história está nessa significação, diversa daquela que é vivida pelos atos determinados dos indivíduos, irredutível à causação, mas também construindo uma ordem de encadeamentos que, embora diversa da causal, está inextrincavelmente ligada aos encadeamentos de causação. Em outras palavras, todo o problema está na diferença e na relação entre a significação vivida pelos agentes históricos e a significação posta por processos de causação desprovidos daquela significação. Esse problema está na origem dos mitos, da tragédia e da crença na Providência. E o marxismo não dá conta dele porque procura reduzir integralmente o nível das significações ao nível das causações, embora, mais do que qualquer outra teoria, mantenha a idéia de significação dos acontecimentos e das fases históricas, afirme a lógica interna do processo e totalize as significações numa significação do conjunto da história (a produção necessária do comunismo). Assim, conclui Castoriadis, ao afirmar que tudo deve ser apreendido em termos de causação, ao mesmo tempo em que deve ser pensado em termos de significação, de sorte que o imenso encadeamento causal é também um encadeamento de sentido, Marx exacerba de tal modo os dois pólos que torna impossível pensar racionalmente o enigma da história.

  • Duas histórias

No ensaio “Marx: de uma visão da história a outra”, Claude Lefort (1978) examina as diferenças no tratamento dado por Marx à história, comparando o Manifesto Comunista, os Grundrisse, O Capital e O Dezoito Brumário. Todavia, a interpretação enfatiza a diferença entre essas obras para melhor ressaltar a identidade secreta que as percorre, pois, afirma Lefort, em todas elas estão presentes duas visões opostas da história, que oscila entre a mutação e a repetição: Marx se esforça para evidenciar a história como produção de um sentido no qual o destino da humanidade está posto em jogo, porém, ao mesmo tempo, não cessa de descrever as forças mobilizadas para desarmar os efeitos do novo.

No Manifesto, a humanidade é uma no tempo e o fio da história, ainda que possa romper-se, não cessa de reatar-se, assegurando a continuidade do drama, mesmo que haja pausas ou regressões. A gênese de nossa sociedade decorre do surgimento da burguesia em um processo de desenvolvimento de várias revoluções, porém distingue-se de todas outras formações históricas pela simplificação dos antagonismos sociais: a determinação econômica do social torna-se plenamente visível e a sociedade se divide em duas classes que se enfrentam diretamente. Essa simplificação é simultânea à existência do modo de produção capitalista em escala mundial e à interdependência recíproca de todas as atividades nessa formação social. Nossa sociedade também é diferente das outras porque imprime um novo ritmo à história, pois, sob a ação das mudanças econômicas contínuas, abala continuamente todas as instituições –“tudo que é sólido se desmancha no ar, tudo que era sagrado se profaniza”–; leva ao desaparecimento das brumas místicas, tanto as religiosas como as políticas (o sagrado se dissolve no egoísmo e no interesse; a política se torna o comitê que administra os negócios da burguesia), libera-se do peso das tradições e força os homens a finalmente considerar o lugar que ocupam na história. Há, no Manifesto, duas histórias, a Grande História, em ritmo lento, e a História Acelerada de um mundo arrastado pela inovação e pela destruição. A revolução dá o sentido último da aventura humana.

No entanto, Marx desmente essa concepção da história e da vida social. Nos Grundrisse, em vez de continuidade, o estudo das formas pré-capitalistas mostra a oposição global entre elas e o modo de produção nascido da divisão entre capital e trabalho. O pré-capitalismo, escreve Lefort, é apreendido a partir do capitalismo como seu outro e o capitalismo não é a conclusão de um processo histórico contínuo comandado por uma contradição fundamental, mas a descontinuidade radical da e na história, “uma mutação da humanidade”.

Somente as condições de formação do capitalismo são capazes de fazer surgir a figura do trabalhador. De fato, nas formas pré-capitalistas, o trabalhador propriamente dito não existe, sua condição é estar “ligado à terra”, tanto no quadro da pequena propriedade como no da propriedade comunal; a terra não é exterior ao homem e ele é proprietário das condições objetivas de seu trabalho. Em oposição à forma capitalista, nas formas pré-capitalistas o trabalho não se encontra na origem da propriedade, esta não é resultado dele e sim sua condição. Assim, é somente enquanto participam da comunidade ou da propriedade comum que os homens trabalham. A comunidade tribal está na origem das três formações pré-capitalistas complexas (asiática, antiga, germânica ou feudal) e a forma comunitária é preservada sob as modificações que cada uma delas introduz, de maneira que em todas elas o estatuto de proprietário permanece condicionado ao pertencimento à comunidade (cujos limites são mantidos fixos), mesmo que esta apareça como uma entidade transcendente (encarnada no déspota asiático, na figura do Estado antigo ou na assembléia dos barões feudais). O estudo do pré-capitalismo é o estudo da eficácia permanente dessa forma: nas três formações, a manutenção do limite fixo da comunidade garante a auto-conservação e, ao contrário, a perda desse limite leva à destruição, esta, porém, não decorre de uma ação interna à formação social e sim de acidentes externos (guerras, migrações, urbanização, dispersão). A mudança vem de fora e não de uma contradição imanente.

Na verdade, o que se observa nos Grundrisse é a presença de dois esquemas de interpretação.

De um lado, Marx visa uma história evolutiva, de outro, uma história repetitiva. A primeira parece regida, em inúmeros textos, pelo desenvolvimento das forças produtivas, o qual esbarra nos limites das relações de produção e, ao fim e ao cabo, se dissolve. Todavia, já desse ponto de vista, a autonomia outorgada a esse fator –exatamente quando está encarregado de incluir a expansão demográfica– parece em contradição com a idéia chave que a produção permanece subordinada a condições socio-naturais, à existência da comunidade mediadora da relação com a terra, ou melhor dizendo, com a idéia de que os efeitos da produção são condicionados pela forma comunitária (Lefort, 1978: 204).

A história é repetitiva –a eficácia da forma comunitária faz com que ela se repita em todas as formações pré-capitalistas e que permaneça indefinidamente se não for destruída por fatores externos– e evolutiva –há passagem da forma pré-capitalista à capitalista. Por isso mesmo Marx oscila na busca do fator da mudança: fala no desenvolvimento das forças produtivas, mas tem que reconhecer que, embora esse desenvolvimento modifique o arranjo das relações sociais, não modifica a forma comunitária e por isso fala na migração e na guerra, oscilando entre um tempo endógeno e um tempo exógeno.

Os dois esquemas interpretativos –repetição, evolução– servirão para distinguir entre as formações pré-capitalistas e o capitalismo, ou o aparecimento inédito de um tipo de devir social no qual se dá a separação entre a existência humana ativa e as condições não orgânicas de existência. A exposição das formas pré-capitalistas indica que a divisão social (homem livre/escravo, patrício/plebeu, barão/servo) não é comandada pelo mesmo princípio que rege a divisão trabalho/capital, pois, nas primeiras, a divisão não implica uma separação entre o homem e as condições orgânicas de sua existência, como ocorre na segunda. Portanto, entre o Manifesto e os Grundrisse há uma diferença que impede de dar universalidade à luta de classes (ou afirmar sua continuidade), pois a figura histórica do trabalhador é resultado de uma separação que inexiste nas formas pré-capitalistas.

Em suma, a idéia de separação só tem sentido no capitalismo e somente nele ela “instaura um princípio de autotransformação do social” (Lefort, 1978: 206), ou a infinitude imanente que inaugura uma história revolucionária, em oposição à história conservadora, que caracteriza o pré-capitalismo. De fato, segundo Marx, nas formações pré-capitalistas, justamente porque não há a separação entre o corpo orgânico dos homens e o corpo inorgânico da terra, a evolução é regida pela destruição (lenta ou rápida) do estabelecimento humano como “índice da contradição inelutável entre a relação dos homens com sua humanidade finita, ancorada numa terra que possuem e os possui, e com sua humanidade infinita, em excesso sobre toda determinação real, associada ao ‘elemento ilimitado da terra’ [...] O infinito se assinala apenas na negação imediata do finito, o ilimitado na negação imediata do limite” (Lefort, 1978: 206). A comunidade pré-capitalista é a imagem de um corpo que anula a exterioridade e por isso mesmo o enigma da história se concentra no momento de desaparição dessa imagem, com o advento da forma capitalista ou da separação. Ora, a interpretação de Lefort toma, agora, uma direção precisa: busca a permanência dessa imagem em textos de O Capital nos quais ela é o centro das descrições econômicas de Marx.

No Livro I de O Capital, Marx apresenta o desenvolvimento do modo de produção capitalista com o desaparecimento da forma comunitária do trabalho quando do surgimento da cooperação e sua passagem à manufatura e desta à grande indústria.

A cooperação pressupõe a figura do trabalhador livre, vendedor de sua força de trabalho e separado dos meios de produção; requer a mobilização de uma massa de capitais para explorar uma massa de forças de trabalho associada a uma massa de meios de produção, que tem por efeito eliminar a diferença qualitativa entre os trabalhos individuais e instituir um trabalho social médio, condição de universalização do mercado –está definitivamente dissolvida a forma comunitária, na qual se estabeleciam as relações de dependência e os trabalhadores permaneciam combinados com seus meios de produção. A cooperação simples é a condição de possibilidade da grande mutação que será introduzida pela manufatura. Ao analisá-la, Marx deixa de lado a cooperação e volta-se para divisão social do trabalho para marcar a irreversibilidade do processo histórico. A manufatura põe em movimento a decomposição do trabalho humano. Nela não se dá apenas a separação entre o trabalhador e os meios de produção, mas a separação entre o trabalhador e ele próprio, dissolvido na figura do trabalhador coletivo. Marx fala em “um organismo de produção cujos membros são os homens”. Trata-se de um corpo monstruoso ou absurdo, pois a manufatura se organiza sobre o modelo da constituição corporal do trabalhador. Mas com essa descrição, a manufatura cessa de aparecer como instituição radicalmente nova, que conteria o princípio de uma revolução continuada, surgindo, em vários textos, como muito semelhante ao modelo das sociedades antigas, e sobretudo operando como estas, ou seja, a partir de um certo grau de desenvolvimento, seu único fim é sua própria conservação. Assim, no exato momento em que Marx está à procura de uma forma nova, de uma diferença de forma no plano econômico e histórico, sua análise da manufatura revela a “permanência do fantasma do corpo” (Lefort, 1978: 213), de tal maneira que uma história revolucionária tende a restaurar uma estrutura imobilizada.

Essa permanência fantasmática do corpo e a presença da repetição no interior da inovação reaparecem na análise da grande indústria. Nesta, o processo de produção se torna autônomo; o modo da divisão do trabalho obedece às necessidade técnicas da fabricação mecânica segundo o saber das ciências naturais, em vez de se fixar nas aptidões individuais. O princípio subjetivo da divisão do trabalho é substituído por um princípio objetivo: os ofícios, que, durante séculos, foram chamados de mistérios (operação secreta dos iniciados, recintos fechados cujos limites nenhum profano podia atravessar, ocultamento do fundamento material da vida dos oficiais), agora se tornam operações transparentes, conhecidas uma a uma e em suas conexões, comandadas pela ciência moderna da tecnologia. Na manufatura, a produção ainda se acomodava ao operário (ao seu esquema corporal); na grande indústria, o operário se adapta à produção. Surge, nas palavras de Marx, “um organismo de produção completamente objetivo ou impessoal”. Passa-se do trabalhador coletivo à reificação, donde as metáforas do autômato, empregadas por Marx: “monstro mecânico”, “força demoníaca”, “dança febril e vertiginosa de seus órgãos de operação”; esse autômato é o sujeito e os trabalhadores são meros acréscimos “órgãos conscientes anexados aos seus órgãos inconscientes”.

Não é apenas nessas análises que o esquema de duas histórias se faz presente. A sociedade burguesa é contraditória: a um só tempo, efetua a interdependência de todas as atividades e comunicação de todos os agentes sociais e a exterioridade recíproca de todas as atividades ou a alienação de todos os agentes. A autonomia da ordem das relações puramente econômicas vai junto com a separação das esferas do político, do jurídico, do religioso, do científico, do pedagógico, do estético. A sociedade burguesa dissolve todas as formas tradicionais de produção e de representação, mas ao mesmo tempo, por meio da ideologia, faz acreditar na racionalidade e na universalidade, dissimulando para si mesma sua própria história. Assim, a história da sociedade burguesa não se resume ao movimento febril da destruição/criação, mas Marx descobre nela “um princípio de petrificação do social” (Lefort, 1978: 217) quando aponta os efeitos da autonomização de cada setor da produção, do disfarce do presente pelo passado e do ocultamento do real pela ideologia. O capital não é uma coisa, não é a soma de meios de produção materiais e fabricados, e sim “um sistema social de produção”. Porém, visto como coisa, ele se produz a si mesmo. É isso o mundo invertido o “universo enfeitiçado”. Isso significa que o princípio objetivo, a moderna tecnologia, a impessoalidade da produção, o desaparecimento dos mistérios são simultâneos ao aparecimento de um mundo fantasmático e misterioso. O reaparecimento dos fantasmas e dos fetiches revela que a repetição é o duplo do progresso e dá a chave da enigmática diferença entre o Manifesto e o Dezoito Brumário.

O Manifesto narra a história burguesa como epopéia; o Dezoito Brumário como “dança macabra”. O Manifesto distingue a sociedade capitalista de todas as outras pela simplificação da divisão social e transparência de sua determinação econômica. O Dezoito Brumário esmiúça a complicação dos antagonismos sociais, o entrelaçamento de várias histórias, cada uma ancorada numa classe social particular (o proletariado como classe em devir e imatura; a burguesia como classe cindida e oposta a si mesma, com várias frações adversárias; a pequena burguesia como classe média ou intermediária; o campesinato como não-classe que é o verdadeiro suporte do poder bonapartista; o lumpenproletariat como não-classe ou classe-lixo; a burocracia e o exército como classes parasitárias, pois embora instrumentos da classe dominante, tornam-se independentes, sob o segundo Bonaparte e instituem o Estado acima da sociedade). No entanto, o primeiro capítulo da obra, ao introduzir o tema da farsa, salienta que as contradições são estéreis, não produzem acontecimentos, são fantasmagorias de “sombras que perderam seus corpos”. Essa história imóvel, porém, é simultânea a uma outra, efetiva, a história da unificação da burguesia como classe, da aparição política do proletariado e da cisão entre Estado e sociedade civil. Como conseqüência, o último capítulo inverte o que é dito no primeiro: em lugar da dança macabra fantasmática, o poder bonapartista aparece como um produto imaginário de mitos conjugados e a revolução está em curso, acumulando forças com método para concentrar seu poder de destruição. O final esclarece o início: diante do novo, diante de um futuro criador, diante de tarefas inéditas, os agentes invocam os mortos e o passado ressurge imaginariamente, uma representação contra a vertigem da mortalidade. A passagem da tragédia à farsa, com que se abre o livro, é inerente a uma sociedade que se formou desconhecendo sua própria realidade e que, quando a ordem social é posta em questão, precisa do recurso à repetição. Para interromper a repetição é preciso um agente novo: o proletariado, que não tira sua poesia do passado e sim do futuro. A sociedade burguesa, enquanto tal, não pode engendrar verdadeiros acontecimentos, só pode repetir e sua insignificância histórica prepara a lógica da contra-revolução: a burguesia precisa da regressão para manter a dominação, caso contrário, a oposição do proletariado terá que ser enfrentada; no entanto, porque não poder enfrentar a contradição real, ruma para o fantasma. E não apenas ela. Com exceção do proletariado imaturo, todas as outras classes e não-classes operam no registro imaginário ou na ilusão.

Por que essa presença tão poderosa do fantasmático na economia, nas relações sociais, na política, na história? Por que Marx foi tão sensível à ilusão e ao imaginário? Porque, desligada da terra e da forma comunitária do trabalho e da propriedade, a sociedade capitalista opera a total absorção da natureza no histórico e é o advento de uma sociedade sem corpo e sem substância. A desincorporação e a dessusbstancialização, índices de uma formação social que é histórica de ponta a ponta, afetam por inteiro o social e o histórico –“tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Porém, simultaneamente, o impulso à petrificação, substancializa e naturaliza o social e o histórico, transformando-os em entidades fantasmáticas. Não é por acaso que O Capital se inicia com o fetiche da mercadoria e termina com a fantasmagoria da fórmula trinitária .

No entanto, Lefort indaga se a obra do próprio Marx não seria expressão dessa dificuldade, se a permanência da referência ao corpo em suas análises econômicas e políticas não seria o signo de que não ficou imune a ela, se a elaboração de duas concepções de história irreconciliáveis não evidenciaria o peso do imaginário em seu próprio pensamento e, finalmente, se, diante da imagem “desse ser estranho, o proletariado, ao mesmo tempo puramente social, puramente histórico e, de certa maneira, fora da sociedade e fora da história –classe que deixa de ser classe porque é a destruidora de todas as classes” não caberia perguntar “se ele é o destruidor do imaginário social ou o último produto da imaginação de Marx” (Lefort, 1978: 223).


  • A apresentação da historia

Ruy Fausto (2002) usa o termo apresentação da história para significar que não há em Marx uma teoria da história, nem uma filosofia da história, mas considerações em torno da história. De acordo com Fausto, a teoria crítica do capitalismo ou a crítica da economia política é, do ponto de vista lógico e não cronológico, anterior à apresentação da história e por esse motivo, sendo essa crítica o centro do pensamento de Marx, é dela que surge uma apresentação sobre a história como um esquema para organizar a dispersão temporal dos modos de produção. Dessa maneira, sem referências explícitas, o estudo de Ruy Fausto desfaz as perspectivas adotadas por Castoriadis e Lefort e as aporias apontadas por ambos.

A história é um pressuposto do discurso marxiano: Marx fala dela, mas não diz o que ela é, pois o conceito de história não é objeto da investigação. Justamente porque não há teoria nem filosofia da história, Marx elabora três modelos de exposição da história os quais têm em comum metapressuposições (isto é, a distinção entre pré-história e história e entre desenvolvimento e devir) e as mesmas pressuposições (propriedade, riqueza, liberdade, igualdade e satisfação). Embora todas as pressuposições estejam presentes nos três modelos, somente uma delas, em cada caso, é determinante. O Manifesto e A Ideologia Alemã formam o modelo da história da liberdade, pois a história é apresentada a partir da luta dos explorados. O segundo modelo, realizado pelos Grundrisse e por O Capital, é o da história da riqueza, pois a histórica é apresentada a partir desse conceito. Finalmente, os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 são o terceiro modelo, o da história da satisfação. Como as metapressuposições e as pressuposições são as mesmas nos três casos, Marx pode apresentar cada uma dessas histórias como um progresso ou uma conquista e, ao mesmo tempo, mostrar que o modo de produção capitalista é, do ponto de vista do desenvolvimento, uma regressão nessas histórias (há nele menos liberdade e menos satisfação) e, do ponto de vista do devir, uma progressão, pois nele estão os pressupostos da sociedade comunista, na qual liberdade, riqueza e satisfação serão reais ou concretas.

A apresentação da história tem duas camadas: a da sucessão dos modos de produção e a da distinção entre pré-história e história. Para entender essas camadas, Fausto resignifica a distinção entre devir e desenvolvimento, entendendo o primeiro como um movimento com dois termos, nascimento e morte, aparecimento e desaparecimento (um começo e um término), enquanto o desenvolvimento é inteiramente lógico (ainda que essa lógica transcorra no tempo), isto é, a negação do sujeito quando passa pelo interior de seu outro e a negação da negação do sujeito quando o seu outro passa no sujeito. O desenvolvimento é a lógica da negação da negação, movimento pelo qual aquilo que era inessencial numa forma anterior se torna um pressuposto da forma seguinte e ao ser posto por ele torna-se essencial a ela, o desenvolvimento, ao invés de afirmar uma continuidade temporal, afirma a descontinuidade, pois quando o inessencial se torna essencial é posta a diferença intrínseca entre a forma anterior e a seguinte.

Além dessa distinção, Fausto propõe uma outra, entre devir e gênese. A gênese corresponde mais ou menos àquilo que os biólogos chamam de ontogênese, um processo de passagem da potência ao ato, em que a forma anterior não desaparece e sim atualiza suas potencialidades na forma nova. Na gênese, há uma conservação das determinações anteriores na forma nova sem nenhuma intervenção externa; é por um movimento imanente à própria forma que ela dá origem à seguinte, isto é, ela atualiza algo que já está nela em potência. Há, portanto, uma imanência entre o começo e o fim do processo, a forma final não destrói tudo que veio antes, e sim determina o indeterminado que a antecedeu. O devir corresponde mais ou menos ao que os biólogos chamam de filogênese, o surgimento de uma espécie nova e o desaparecimento de uma espécie anterior. No devir há desaparição, perecimento, morte de uma forma com o nascimento da outra e não exclui interferências externas. A originalidade de Marx é lidar simultaneamente com a gênese e o devir dando um aspecto contraditório ao discurso histórico. Essa contradição, porém, é dialética, pois a força do discurso histórico de Marx está justamente em tomar a reflexão de uma forma histórica tanto como devir quanto como gênese.

Nos Grundrisse e nos textos históricos de O Capital, a gênese não coincide com o término de uma história anterior (como ocorre na ontogênese biológica) e o devir não é a desaparição completa das determinações anteriores (como ocorre na filogênese biológica), porque devir e gênese operam simultânea e contraditoriamente, nenhum deles é inteiramente interno nem externo. Por esse motivo, nessas duas obras, o conceito de pressuposto tem dois sentidos: quando referido à gênese ou quando se encontra no interior de uma gênese, Marx fala na permanência de restos ou ruínas, havendo assim continuidade temporal; porém, quando referido ao devir, Marx fala em destruição da forma anterior e no surgimento da nova forma. O entercruzamento entre devir e gênese permite dizer, ao mesmo tempo, que uma forma nasce no interior da outra quando esta outra já está destroçada e que ao nascer a nova forma destrói completamente a anterior.

Não seria isso, afinal, uma teoria ou uma filosofia da história? A resposta é negativa: essa generalidade do processo não é a unificação ou a totalização de uma diversidade dispersa. Se quisermos (à maneira do marxismo vulgar) unificar e totalizar a dispersão das formas e considerar que a determinação econômica está presente do começo ao fim da história, não entenderemos a linguagem do Marx nos Grundrisse, nem suas análises do mundo antigo e medieval. Por exemplo, quando fala da propriedade na antigüidade greco-romana, além de dizer que essa propriedade era a propriedade comum da terra, diz também que ela não tinha como finalidade a produção da riqueza, mas ser propícia à criação de melhores cidadãos. Ou seja, o conteúdo da economia antiga não é econômico. Da mesma maneira, não é casual que fale em modo de dominação asiático e modo de dominação feudal e não em modo de produção asiático ou feudal, pois são formações em que não se pode falar em modo de produção. Essas observações indicam que a distinção entre estrutura econômica e superestrutura política, jurídica e cultural não é universalizável .

Com efeito, nas chamadas formas pré-capitalistas, a produção tem como finalidade produzir valor de uso, mas no capitalismo sua finalidade é a valorização do valor. Nas formas pré-capitalistas, justamente porque a finalidade da produção é o valor de uso, não se pode separar o econômico daquilo que o determina, e o econômico é determinado pelo religioso, pelo político, pelo sistema de parentesco etc., portanto, é determinado pelo que no capitalismo será superestrutura. Na forma pré-capitalista, é impossível separar os conteúdos das categorias jurídicas e econômicas porque a propriedade da terra está ligada ou à condição do soberano ou à condição do cidadão, isto é, a propriedade da terra é política e define uma relação extra-econômica; no modo de produção capitalista a condição de cidadão e a de proprietário estão separadas e a economia determina a política. Na forma pré-capitalista, para se obter o excedente, é preciso repressão, coerção, violência física, isto é, ações extra-econômicas; na forma capitalista, o excedente é retirado diretamente do produtor por vias exclusivamente econômicas. Portanto, nas formas pré-capitalistas, as superestruturas entram necessariamente na constituição do modo de produção, e na forma capitalista a separação da economia com relação aos outros domínios é fundamental, ou seja, as superestruturas são pré-condições externas à economia. Nas formas pré-capitalistas, as relações de produção estão pressupostas, mas são algo abstrato porque o fundamental é a comunidade; no modo de produção capitalista dá-se exatamente o contrário, a comunidade é abstrata e a relação de produção é o fundamental e concreto. Isso significa, portanto, que também a expressão relações de produção tem um sentido completamente diferente nas formas pré-capitalista e capitalista, ou melhor, rigorosamente é apenas no capitalismo que há relações de produção; essa expressão não tem sentido no mundo antigo e no feudal.

Também não pode ser universalizada a relação entre matéria e forma, que se refere ao progresso técnico ou ao que se passa nas forças produtivas. Nas formas antigas, há, evidentemente, o emprego da técnica, mas é reduzido, aleatório, intermitente, e, sobretudo, a produção econômica não impõe a criação de novas técnicas, não impõe novos saberes para o desenvolvimento das forças produtivas; há uma espécie de exterioridade entre a matéria e a forma. Ao contrário, no modo de produção capitalista, a matéria é impregnada pela forma, isto é, o capital (a forma) se apossa de todas as manifestações da base material, impondo-lhe mudança incessante e permanente, e por isso as técnicas e as condições das forças produtivas não cessam de mudar. O sistema põe constantemente o desequilíbrio entre a matéria e a forma para que esta possa se impor sobre a matéria, pois isso é a condição do desenvolvimento do sistema, mas é também condição das crises do sistema e que lhe são constitutivas.

A noção de crise permite apresentar uma outra diferença entre as formas pré-capitalistas e o modo de produção capitalista. Nos dois casos, a crise é analisada por Marx a partir da relação entre o finito e o infinito. Fausto parte da diferença entre limite e barreira, proposta em alguns textos de Marx. A noção de limite é empregada em sentido espinosano (omnis determinatio negatio est, toda determinação é uma negação) : limite é aquilo que na própria coisa configura o ser que ela tem, é seu interior ou sua configuração interna, com a qual estabelece sua relação com o exterior. A barreira é aquilo que, vindo de fora, se achega ao limite, encosta-se nele e, dependendo da força, a barreira pode dobrar-se gradualmente até se tornar o limite, isto é, penetrar no interior da coisa e reconfigurá-la. Na antigüidade, o sistema se define como finito, marcando o ponto além do qual ele não pode ir sem se destruir: a auto-conservação do sistema é seu limite, além do qual o sistema se perde. Dessa maneira, nas formas antigas, o limite se torna uma barreira que protege o sistema e que, se for transposta, o destrói. O capitalismo, pelo contrário, se define como infinito; nesse sentido, pode-se dizer que, no início, não possui barreira externa, mas somente limites internos ou imanentes, pois quando o capital começa a se acumular derruba todas as barreiras externas que prendem o seu desenvolvimento colocando-as no seu próprio interior ou as convertendo em limites internos. Porém, como é infinito, o capital é a negação de qualquer limite, de maneira que a interiorização da barreira transformada em limite significa que não há mais barreiras nem limites.

A finitude das formas pré-capitalistas se expressa no conjunto de seus limites: têm o limite da propriedade –não é de todos–, o limite da liberdade –é de um só, no despotismo oriental, e de alguns na Grécia e em Roma–, o limite da igualdade –é de alguns e não de todos–, e o limite da satisfação –é para alguns e não para todos. A finitude significa que a forma está organizada de tal maneira que não pode ir além do seu limite, pois este a define de dentro para fora, é seu próprio ser; portanto, ultrapassar o limite significa perder o ser, destruir-se. A destruição ocorre no instante em que uma barreira externa se cola no limite e vai empurrando a forma, que busca quebrá-la. Para enfrentar a barreira externa, a forma busca empurrar o limite, ampliá-lo, mas como a barreira se colou no limite, o esforço para quebrar a barreira também quebra o limite e forma é destruída . Na forma capitalista, como nas outras, o limite é imanente, entretanto, o capital tem a peculiaridade de incorporar no seu interior as barreiras externas –suga por inteiro a exterioridade. O capital é o infinito. A diferença entre o modo de produção capitalista e as formas pré-capitalistas está em que, nele, depois de interiorizadas as antigas barreiras, incorporadas como limites internos, novas barreiras vão emergir como limitações decorrentes de seu desenvolvimento interno. Nas formas pré-capitalistas as barreiras são posteriores ao limite e não podem ser ultrapassadas, na forma capitalista, as barreiras são interiores e podem ser ultrapassadas, isto é, absorvidas pelo limite, mas em cada ultrapassagem surgem novas barreiras, de sorte que a morte do sistema não vem, como nas formas pré-capitalistas, do fato de ultrapassar as barreiras e sim de que ele não pode ultrapassá-las sem produzir outras. O capital é o mau infinito .

Nas formas pré-capitalistas, a história é da comunidade ou da identidade, ameaçada pela perda do limite interno e pela existência de uma barreira externa. A crise das formações pré-capitalistas é uma crise da sua identidade. No capitalismo, dá-se exatamente o contrário: como ele é o sugamento de toda exterioridade, nada exterior pode destruir sua realidade e esta não é a identidade e sim a contradição. O capitalismo se define pela impossibilidade da identidade porque seu pressuposto incessantemente reposto é a separação: separação de todos os momentos do processo de trabalho, separação entre indivíduo e sociedade; separação entre estrutura e superestrutura separação entre as esferas da superestrutura. Esse modo de produção é o modo da não-identidade no qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”. As formas pré-capitalistas terminam quando perdem a identidade; a forma capitalista terminará quando uma identidade aparecer, quando a contradição for levada ao seu ponto extremo e o processo da negação da negação, a revolução, concluir a contradição e puser a identidade.

A distinção e o entrecruzamento entre gênese, devir e desenvolvimento permitem a Marx discutir as relações entre necessidade e contingência, necessidade e liberdade. A temporalidade interna de uma forma histórica é obviamente necessária, pois é o movimento de reflexão e constituição do sujeito. A temporalidade externa é contingente, pois depende de múltiplos acontecimentos externos ao sistema. No entanto, Marx considera os períodos de transição necessários. Isso significa que a temporalidade externa adquire necessidade e que o tempo interno se torna contingente, ou seja, não existe garantia nenhuma de qual forma vai suceder a outra; não existe garantia de que apenas a necessidade interna do desenvolvimento é suficiente para alcançar o devir. A contingência é afetada de necessidade porque a forma que vai desaparecer oferece os pressupostos necessários para a forma seguinte; o desaparecimento é contingente, mas essa contingência é necessária porque os destroços são os pressupostos da forma seguinte. Mas a necessidade também é afetada de contingência, porque a forma anterior desaparece contingentemente. A noção de transição não pretende estabelecer uma continuidade etapista na história, mas tem a função de mostrar o cruzamento do necessário e do contingente em cada passagem de uma forma para outra.

  • Os modelos da apresentação da história

No Manifesto, o núcleo é a mera sucessão do que era até aqui, do que é agora e do que será amanhã, graças à luta de classes, sem nenhum movimento dialético. Em A Ideologia Alemã, o núcleo é a divisão social do trabalho; não só a história é narrada tendo como seu fato inaugural a divisão social do trabalho como também a emergência da ideologia, decorrente da divisão do trabalho em material e intelectual. Nessas duas obras, a revolução é a destruição final da existência de classes oprimidas; e em ambos, o capitalismo desenvolve as forças produtivas até se tornarem forças destrutivas que o esgotam. Nos dois textos, a revolução é um ato de força que depende de certas condições objetivas gerais que se encontram na sociedade burguesa levam o proletariado a tomar consciência de si como classe explorada, passando de classe em si à classe para si, passagem que é o núcleo da historicidade em ambas as obras. No Manifesto, a revolução faz com que o comunismo seja o fim da propriedade burguesa e o início do trabalho livre. Em A Ideologia Alemã, a revolução põe o comunismo como fim da divisão do trabalho e assegura a supressão do trabalho, por isso nessa obra, o trabalho que existirá na sociedade comunista não será o trabalho livre tal como aparece no Manifesto, e sim uma atividade criadora, expressão de liberdade em todos os campos da existência humana.

Em O Capital e nos Grundrisse, há dois discursos dialeticamente contraditórios: o discurso posto da apresentação da história e um discurso pressuposto da apresentação da história. Agora, as metapressuposições são efetivamente postas e as pressuposições serão integradas no esquema do bom e mau infinitos. A liberdade, a igualdade, a riqueza, a propriedade e a satisfação são finitas ou limitadas na antigüidade, são universalizadas e negadas pela má infinitude do capitalismo e são postas na sua concreticidade no comunismo, ou bom infinito. A antigüidade é a posição da finitude, o capitalismo, a negação da finitude no mau infinito e o comunismo, negação do mau infinito capitalista no bom infinito comunista. Nessas duas obras, diferentemente de A Ideologia Alemã, a ideologia deixa de ser um conteúdo falso e sem sentido e passa a ser uma verdade negativa.

Para marcar a diferença entre a história não dialética do Manifesto e da Ideologia Alemã e a história dialética dos Grundrisse e de O Capital, Fausto propõe o que chama de silogismo dialético, com o qual entenderemos a reflexão efetuada pela manufatura e sua diferença com respeito à reflexão realizada pela grande indústria.

Num silogismo, há três proposições (duas premissas e uma conclusão) e dois termos extremos ligados por um termo médio para se obter uma conclusão. Na manufatura, o termo médio é o instrumento, os termos extremos são o trabalhador e a matéria prima. O silogismo dialético da manufatura é: o instrumento age sobre a matéria prima (primeira premissa), mas o trabalhador coletivo maneja o instrumento (segunda premissa), então, na verdade, o trabalhador coletivo age sobre a matéria prima, portanto (conclusão), na manufatura o sujeito é o trabalhador coletivo, constituído pela mediação do instrumento. Na primeira premissa, o instrumento é o sujeito, na conclusão o trabalhador é o sujeito, é ele e não o instrumento quem age sobre a matéria prima. O silogismo da grande indústria é diferente porque, agora, o termo médio é o trabalhador, os termos extremos são a matéria prima e a máquina, e, na conclusão, o sujeito é a máquina. A máquina age sobre a matéria prima e o trabalhador apenas vigia o trabalho da máquina e a protege de perturbações. Na grande indústria, o trabalho vivo (a atividade do trabalhador) é apropriado pelo trabalho objetivado ou morto (a máquina), porque a relação do capital como valor que se apropria da atividade de valorização é posta no capital fixo, que existe como maquinaria. O trabalhador é formalmente o suporte do capital e materialmente o apêndice do capital. Na passagem da manufatura para a grande indústria, o corpo inorgânico do homem é perdido formalmente e materialmente, isto é, na manufatura, há uma comunidade de trabalhadores parciais, na grande indústria, a comunidade é a comunidade das máquinas. A subordinação real do trabalhador ao capital se faz pela adequação plena entre a forma e a matéria, isto é, pela apropriação da ciência pelo capital. A ciência é, portanto, a alma do capitalismo e o trabalhador perde sua alma; a ciência também é o corpo inorgânico do capital e o trabalhador se torna o corpo orgânico do capital. O trabalho morto, que a ciência traz com as máquinas, vampiriza o trabalho vivo do trabalhador. Se reunirmos o silogismo da manufatura e o da grande indústria, percebermos que a passagem da manufatura para a grande indústria é a supressão definitiva da figura do trabalhador como sujeito e, dessa maneira, obteremos o silogismo dialético geral do capitalismo. Esse silogismo é a análise que Marx faz da passagem da fórmula M-D-M (mercadoria–dinheiro–mercadoria) para a fórmula D-M-D’ (dinheiro–mercadoria –dinheiro’), ou seja, o silogismo do modo de produção capitalista é aquele no qual efetivamente não há ninguém, só há dinheiro e por isso há o fetichismo do capital.

Em O Capital e nos Grundrisse, o capitalismo é aquela formação que, pela primeira vez, totaliza o processo histórico. Não totaliza a história inteira e sim se totaliza e ao se totalizar torna compreensível o restante da história (a estrutura do homem explica a do macaco). O capitalismo se totaliza no espaço, ocupando o planeta inteiro, e se totaliza no tempo porque ele é a transição da pré-história para a história, e, finalmente, efetua uma totalização interna da sua própria estrutura social, numa totalização vertical.

Por um lado, há uma descontinuidade entre capitalismo e comunismo, como em toda passagem de um modo de produção para outro, na medida em que o capitalismo só oferece para o futuro os pressupostos e mais nada. Entretanto, por outro lado, a passagem é diferente de todos os casos anteriores porque é a passagem da pré-história à história, não é uma mutação como outras, é uma revolução no sentido pleno. O fim do capitalismo deixa como pressuposto para o comunismo o máximo desenvolvimento das forças produtivas na fase pós industrial, graças à ciência e à tecnologia, pois é esse pressuposto a condição para que na sociedade comunista não haja trabalho nem divisão social do trabalho, mas liberdade, criatividade e igualdade. Em O Capital, o trabalho surge como uma necessidade natural e, portanto, é o lugar da não liberdade; nessa obra, Marx acredita que ainda haverá trabalho na sociedade comunista, será um aspecto de não liberdade que permanece como um fundo irremovível. Mas, nos Grundrisse, graças à idéia de pós-indústria e de desenvolvimento da ciência, desaparece a idéia de que o trabalho material continuaria sendo necessário; os homens não precisarão realizar trabalho material porque os autômatos irão fazê-lo. Muda, assim, o significado do trabalho: é criação, automanifestação do homem no saber e nas artes. Nos Grundrisse, portanto, a fórmula célebre, “de cada um segundo suas capacidade, a cada um segundo suas necessidades”, se torna efetivamente libertária.

 
  • Bibliografia

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